Os comboios que vão para Antuérpia:
"Às vezes
vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. Mas
antes de lá chegar os meus olhos encontravam uma árvore esquisita – tímida mas
tenazmente via – num quintal próximo. Esta árvore metia medo: era como a
esperança em mim mesmo, ou uma ainda mais ambiciosa aposta: a fé dolorosamente
contraditória dos homens. Nos homens? Há em mim todas as virtudes da confiança,
mas sou um desesperado. Apesar de tudo também sou um homem. Tenho capacidades
de amor. Amo a minha
semelhança com todos os homens, mas desespero nesse mesmo amor. Estou
fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que consiga
partir de Antuérpia depois de lá chegar num desses comboios rangentes.
Antuérpia não é um sítio final. É uma cidade como as outras: com bares e
nevoeiro, o silêncio, as pessoas, as vozes, a matemática impenetrável das
multiplicações e desmultiplicações, e o fluxo e refluxo das imagens. Em
Antuérpia há prostitutas, há um calor humano degradado, a embriaguez. Lá também
se morre. Talvez alguém tenha um dia ressuscitado em Antuérpia. Não sei.
(Herberto Helder, Os Passos em Volta)