O Homem - Sophie de Mello Breyner
" (...) Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou
a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para
dar e se volta para fora procurando uma resposta: A sua cara escorria
sofrimento. A sua expressão era simultaneamente resignação, espanto
e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio,
rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido
na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e
planícies de silêncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me
lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus
gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como
se tivesse ficado vazia olhando o homem.
A multidão não parava de passar. Era o centro do
centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente _ passavam
sem o ver.
Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava.
Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão
estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o
separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse
remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos
queremos agir e não podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do
passeio, contra o sentido da multidão.
Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o
via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma
criança nos braços rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter
decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via
bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio
do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava
atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era
impossível continuar parada.
_ Então, como o nadador que é apanhado numa corrente
desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao
movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem. (...)